Cannabis melhora a vida de pacientes e produção familiar avança

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Criada por pais de Sofia, que tem doença rara, fazenda no interior do Estado do Rio já produz medicamentos para mais de 3 mil pacientes que dependem do canabidiol

Sofia Langenbach nasceu com uma doença genética rara, que provocava dezenas de convulsões por semana. Os primeiros sintomas da ndrome de deficiência de CDKL5, proteína importante para o desenvolvimento do cérebro, começaram aos 35 dias de vida. Depois de anos e diferentes tentativas de tratamento, a família descobriu que o que mais controlava as crises de epilepsia era o canabidiol, substância presente na Cannabis sativa, o nome científico da maconha. Hoje, aos 14 anos, Sofia tem apenas duas convulsões por semana, o que melhora bastante sua qualidade de vida.  

Mas para chegar a essa condição foi preciso uma enorme batalha, que hoje já envolve mais de 3 mil outros pacientes que dependem da mesma medicação. A luta da família da menina para plantar maconha para fins medicinais no Brasil – o que era considerado tráfico internacional de drogas – é o tema do documentário “O Outro Mundo de Sofia”, que estreou no Globoplay. O Fantástico deste domingo mostra um pouco dessa luta e os detalhes sobre o uso do canabidiol medicinal.

Plantar a Cannabis sativa, a maconha, é proibido no Brasil. Mas, uma decisão judicial garantiu que os pais da Sofia pudessem cultivar a planta para fins medicinais. De 2015 até 2020 eles plantaram em casa e produziam artesanalmente o óleo rico em canabidiol, a parte da planta que não tem substâncias alucinógenas. O que sobrava, eles doavam para o tratamento de outras crianças.

Assim, o que começou na varanda do apartamento com apenas quatro plantas, deu lugar a uma fazenda com quatro mil hectares em Paty do Alferes, no interior do Estado do Rio de Janeiro, e vem se expandindo desde o ano passado. Os medicamentos produzidos no local já proporcionam mais qualidade de vida para cerca de 3 mil pacientes das famílias de várias partes do estado e do país que se juntaram à associação criada pelos pais de Sofia.

“O mais legal dessa história é que a família da Sofia não tá interessada em resolver problema da Sofia. A família da Sofia tá interessada em resolver como que a gente vai viver em sociedade. Ela descobriu que ela pode mudar todo o seu entorno”, disse Rapha Erichsen, o diretor do documentário.

“Você só consegue quebrar o preconceito com informação”, defende a mãe de Sofia, a advogada Margarete Brito, que deixou a profissão e se tornou uma das principais ativistas do setor canábico no Brasil. Primeira família a obter um habeas corpus para cultivar a planta em casa para fins medicinais, ela e o marido partiram do autocultivo para o incentivo a outras famílias que precisavam aprender a cultivar e se informar sobre o tema. Também doavam mudas e sementes.

Batalha judicial para produzir cannabis medicinal no interior do RJ

Pais de Sofia, a advogada Margarete Brito e o designer Marcos Lins Langenbach fundaram em 2014 a Associação de Apoio à Pesquisa e a Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi). Apenas sete anos depois, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) regulamentou a fabricação e a venda de produtos para uso medicinal nas farmácias brasileiras.

Em julho de 2019, a Apepi conseguiu uma liminar da Vara Federal do Rio de Janeiro autorizando a Apepi a realizar o  cultivo, pesquisa, manipulação e fornecimento de produtos à base de cannabis aos seus associados. No entanto, três meses depois, a liminar foi derrubada por um recurso da própria Anvisa. Desde então, a Apepi estava trabalhando sem respaldo ou segurança jurídica.

Após uma longa disputa judicial com a Anvisa, no final de fevereiro de 2022, saiu a sentença proferida pelo juiz federal Mario Victor Braga Pereira Francisco de Souza, da 4ª Vara Federal do Rio de Janeiro.

A Apepi foi novamente autorizada a realizar pesquisa, plantio, colheita, cultivo, manipulação, transporte, extração de óleo, o acondicionamento, a embalagem e a distribuição do extrato de canabidiol, oriundo de cannabis sativa, exclusivamente para fins medicinais e para destinação a pacientes associados a ela ou a dependentes destes que demonstrem a necessidade do uso do extrato.

Na sentença, o MPF destacou “a existência de autorização legislativa para o plantio de Cannabis com fins medicinais como está disposto no Parágrafo único, do artigo 2º, da Lei Federal nº 11.343/2006, onde estabelece que a União pode autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais, referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização, respeitadas as ressalvas supramencionadas”.

O teor da sentença foi o que Margarete Santos de Brito, fundadora da Apepi tanto esperava. “Foi do jeitinho que precisávamos para que sigamos nos moldes da RDC 18, ou seja, farmácia viva”. “Mais uma vitória até aqui e, por tudo isso, queremos agradecer ao juiz, ao MPF, ao nosso advogado, aos nossos colaboradores e a todos nossos associados. A luta está só começando. Viva as Associações!”, finalizaram.

Produção em larga escala para atender mais de 3 mil pacientes

A Apepi é uma associação civil, de direito privado, sem fins lucrativos que possui duas sedes: a  administrativa localizada na Rua do Ouvidor, Centro do Rio de Janeiro, e a Fazenda-laboratório, localizada em Paty de Alferes, que busca ser referência no cultivo de cannabis com foco nos estudos e pesquisas da cadeia produtiva de produtos à base de cannabis, cujo produto seja de baixo custo.

No fim de 2019, o casal adquiriu a propriedade, na zona rural de Paty do Alferes, com 42 hectares, cerca de 420 mil metros quadrados, para cultivar maconha em escala suficiente para fornecer remédio para os então 1 mil associados. Um ano após o início da produção de maconha da fazenda, houve a possibilidade de que a Apepi aumentasse o número de associados atendidos, que, hoje, são cerca de 3 mil.

“Mas a plantação precisa ser ampliada para que as inscrições de novos associados possam ser retomadas. Quando as inscrições estão abertas, a entidade recebe cerca de 500 novos associados por mês. A pandemia da Covid-19 e o excesso de chuvas atrapalharam muito a produção da planta da cannabis e a produção do óleo em Paty”, contou Marcos Langenbach.

A meta da Apepi é plantar 10 mil pés de maconha – o potencial da fazenda é de 50.000 pés. Em Campina Grande, na Paraíba, a Abrace (Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança) já chegou à marca de 25.000 pés e produz óleo medicinal para milhares de pacientes.

Na fazenda da Apepi, o número de funcionários saltou de três para quase 30 funcionários com carteira assinada num município onde é difícil abrir vagas de emprego, e mais ainda, com carteira assinada.

Segundo Margarete, hoje, a Apepi investe na fazenda cerca de R$ 100 mil por mês, com material de construção para ampliação dos laboratórios, área de clonagem das melhores mudas de cannabis, mais a folha de pagamento. Toda maconha plantada em Paty é transformada em óleo no laboratório da fazenda, onde ele é extraído da cannabis.

As fases da produção do óleo que trata 3 mil pessoas

A produção da Apepi em Paty do Alferes começa no clone da muda mãe (as madres), porque todas as plantas têm que ter um padrão, pois é para fazer remédio, esse clone é colocado para enraizar por 15 dias. Após o enraizamento, a muda clonada vai para o vaso crescer.

Em seguida, em uma segunda fase, já em um vaso maior onde a planta vai ficar mais 60 dias, chega o momento de florir, quando ela vai para o platô de Flora, um local cercado, com segurança, circuito de câmeras, vigia noturno etc. para evitar roubos.

O ciclo inteiro gira em torno de 100 dias. As flores são colhidas e seguem para a secagem em armários por 7 dias, quando ela é embalada e armazenada em geladeiras no laboratório. Nesse momento, tem início a parte da extração dos canabinóides da flor que vão dar origem ao óleo.

Após isso, uma amostra do extrato é enviada à Unicamp, em São Paulo, para ser analisada e atestada sua composição. Ao final, o extrato é diluído em azeite extra virgem, para então ser embalado e enviado aos mais de 3 mil associados da Apepi no Rio de Janeiro. Somente a Unicamp responde por 8% da pesquisa acadêmica de todo Brasil.

Todas as plantas são rastreadas através de QR Code, tecnologia que a Apepi implantou a partir do know how da Abrace e que permite o acompanhamento e rastreabilidade do remédio dando segurança ao sistema.

Toda a cadeia produtiva da semente da cannabis ao frasco de remédio tem que ser rastreável. Também é nesse sistema que os associados são cadastrados, e onde receitas e laudos são encaminhados para a área de pedido e dispensação do remédio, conforme a prescrição do médico.

Centro tecnológico de Paty de Alferes

Hoje o sonho e o desejo da entidade são transformar os laboratórios da Apepi em um parque tecnológico para incentivo à pesquisa. Para Margarete, a produção do tomate e da maconha são muito parecidas, principalmente quanto ao clima, à terra, à umidade, quantidade de sol, etc. “Queremos que a Apepi se torne um modelo a ser replicado no Brasil“, disse Margarete.

A Apepi tem contrato de parceria com a Fiocruz, Unicamp, UFRRJ, IFRS, entre outras. Apesar da proibição, as associações de cannabis medicinal como a Apepi – RJ, Abrace – PB, Flor da Vida – SC, Maleli e Cultive – SP continuam a plantar cannabis, além de oferecerem cursos de cultivo, extração e remédios a baixo custo para seus associados.

Estima-se que, hoje, pelo menos 36 associações, de norte a sul do Brasil, atendem mais de 50 mil pacientes, segundo informações da Federação das Associações de Cannabis Terapêutica (FACT).

“Queremos entender a cadeia produtiva, suas particularidades, custos, caminhos, o que essa atividade pode ajudar onde ela está inserida, modificando a realidade e das pessoas, principalmente as da zona rural. Nosso objetivo é ser um centro de referência. Quando o projeto de lei 399 virar lei já estaremos muito avançados”, diz Margarete.

Cannabis medicinal e seu potencial terapêutico

É o termo usado para se referir à Cannabis (maconha) quando ela ou produtos fabricados com ela são usados com finalidade terapêutica. Sua indicação para diversas enfermidades tem se popularizado graças aos avanços da ciência que explicam seu mecanismo de ação e confirmam seus benefícios.

Cannabis sativa produz uma resina rica em canabinóides, moléculas que têm a capacidade de regular nossa fisiologia de várias maneiras. Essas substâncias são especialmente concentradas nas flores das plantas fêmeas da espécie. A Cannabis produz mais de 80 tipos de canabinóides. Os que têm propriedades medicinais mais conhecidas são o CBD e o THC.

A ação medicinal da cannabis é explicada por sua interação com o sistema endocanabinoide, um mecanismo de regulação do meta­bolismo presente em todos os vertebrados e invertebrados. Esse sistema é composto por canabinoides produzidos pelo nosso pró­prio organismo – os endocanabinoides – e receptores específicos.

THC – Dor crônica, inflamações, anorexia, espasticidade muscular, náusea induzida por quimioterapia.

CBD – Convulsões, autismo, inflamações, ansiedade, psicose, neuroproteção.

Periquiteira: planta contém canabidiol, mas sem THC

Não é apenas na Cannabis sativa que se encontra a o canabidiol, com poderes terapêuticos. O Fantástico deste domingo mostrou ainda uma descoberta recente feita na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pode revolucionar o futuro dos tratamentos com canabidiol. Pela primeira vez, ele foi encontrado fora da cannabis sativa, numa planta encontrada no Brasil e chamada periquiteira (Trema micrantha blume).

Apesar da presença do canabidiol, o THC, que é a substância considerada alucinógena na Cannabis sativa, não foi encontrado na planta, o que pode favorecer os estudos, já que plantar maconha no Brasil é proibido. A previsão, no entanto, é que só depois dos três primeiros anos de pesquisa comecem os testes in vitro, e depois, em humanos.

Fonte: G1 e Jornal Regional, com Redação

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